Fabio Morais
O performer
Nem todos que olham o bebê atrás do vidro, nesta mistura de bebês que os berçários friamente proporcionam, têm noção de mais este clic! no mundo, um algo a mais do que simplesmente o pequeno cuspe da Natureza que os bebês costumam ser. E quando ele arregala os olhos ainda cinzentos e meio cegos, mesmo que não enxergue quase nada (e nem saiba ainda relacionar-se com o pouco que enxerga), inaugura minimamente mais um olhar que de alguma forma irá tocar para a frente as curiosidades e desconfianças humanas sobre o mundo.
Fabio Morais, Prólogo. In: Performer. A ser publicado.
Foi-me encomendado um texto critico sobre a série de performances realizadas pelo Performer em avenidas das cidades de São Paulo e Paris, em sua casa, palcos romanos, museus e galerias comerciais, cujas transcrições e instruções para que possivelmente possam ser refeitas pelo público estão apresentadas em forma de texto apenas – sem imagens - nos painéis do Paço das Artes.
Não há imagens, pois o Performer entende que sempre nos valemos da linguagem para enquadrar qualquer noção de mundo que nos é oferecida (ou conquistada). Àquele dito popular que diz que um quadro vale mais do que mil palavras, o Performer, aplicando o vinil adesivado nos painéis do espaço expositivo, diria: mentira. O quadro (a fotografia, vídeo, escultura, objetos, fenomenologias, documentação de performance, a fruição da obra, o olhar,) é texto, ficção.
Frente a essa condição, ofereci a elaboração de um desenho que interpretasse o trabalho desse artista para que o catálogo dessa exposição de artes visuais tivesse pelo menos uma imagem (a fim de salvar o catálogo, a arte contemporânea, talvez). Mas o presente coordenador editorial dessa publicação, o Sr. Marcelo Amorim, respondeu-me:
- Daniela, você não sabe desenhar. Atenha-se ao mundo das letras. Vire-se.
Inquieta, propus uma conversa com o Performer no Café Suplicy nos Jardins na tentativa de emular o encontro de Christian Boltanski, Bertrand Lavier e Hans Ulrich Obrist no Café Select em Paris em 1993, onde eles elaboraram a proposta curatorial “in progress” de do it.
Só um parêntese, essa é uma exposição que, segundo o curador, “observa os efeitos de tradução de um trabalho artístico no que ele circula em várias permutações de linguagem” , pois lhe interessa, como a Boltanski e a Lavier, a noção de interpretação como princípio artístico. Hospedada até hoje no site e-flux.com, ela lista instruções individuais elaboradas por inúmeros artistas a serem realizadas pelo leitor-participante em qualquer parte do mundo. Posteriormente, imagens dessas ações podem ser postadas no site, que também conta com a do it TV, onde alguns artistas da exposição passam instruções em vídeo para a realização da ação. Yoko Ono sugere atuarmos um voo, decolando do topo de uma escada; Michelangelo Pistoletto nos instrui a criar uma escultura (uma bola) com os jornais impressos do dia e fazê-la circular empurrando-a pelas ruas de Viena, em seu caso, mas também poderia ser em João Pessoa, por exemplo. Alguns museus da Europa participaram do projeto abrigando as execuções de algumas instruções artísticas. Porém, após o término da duração do programa, o curador demanda que os resultados sejam destruídos a fim de evitar o fetichismo dos objetos. Ou seja, o projeto só existe no mundo imaterial da web, um mundo subscrito por textos html. Fecha parêntese.
O Performer sugeriu pensarmos em outro lugar, pois nos bairros da elite paulistana acontecem muitos imprevistos, e ele seria incapaz de me mandar um milhão de mensagens de texto via celular para garantirmos o encontro, pois a escrita desses textos é muito tosca e imediatista (ps: minha primeira ideia de oferecer uma imagem ao coordenador editorial como texto crítico era a de enviar via bluetooth ao seu computador uma imagem criada com meu celular que ilustrasse o trabalho do Performer, porque eu não sei desenhar mesmo. Mas fiquei estranhamente constrangida em fazê-lo, frente a afirmação do Performer de não costumar passar a necessitar daquilo que a tecnologia/capital nos obriga, artificialmente, a necessitar). E ainda ressaltou que o encontro do trio no Café Select em Paris é mentira; que isso foi só uma frase de efeito para a introdução do conceito de do it; que por mais que se tente uma “radical experimentação de conceitos que enfatizem a livre interpretação que caminhem à liberdade” , a produção de arte contemporânea européia ocidental ainda não conseguiu sair de Montmartre. Concordei, pois parece-me contraditório exigir a destruição do objeto em nome da não-fetichização da arte (ou a exigência de qualquer outra coisa) e caminhar sentido à liberdade ao mesmo tempo.
Acabamos nos encontrando numa pizzaria na esquina da Rua Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, na periferia de São Paulo. Ele me disse que a série de performances surgiu depois de ter assistido a todo o acervo de performances do Centre George Pompidou em Paris, quando lá morou para realização de uma residência artística, em 2005. Assistiu a tudo e, para sua surpresa, sentiu uma profunda decepção com as imagens dos registros de performances de Marina Abramovich, Vito Acconci, Chris Burden e todos os outros. Para ele, as imagens esmagaram suas propostas, e amoleceram o impacto que nele causou primeiramente a leitura da descrição dessas performances.
As imagens passam uma noção bizarra e conhecidamente problemática de “verdade”, de que aquilo aconteceu mesmo, daquele jeito, enquanto que a leitura garante uma realidade verossímil, onde nela pode-se encarar o que há de verdadeiro na ficção. A pretensão de deter uma verdade absoluta é fonte de toda a violência, diz Muniz Sodré. E, talvez, as imagens criadas com dispositivos analógicos, eletrônicos e digitais, mesmo que experimentais, não deixam de ser afirmações de uma verdade qualquer, documentada ou atuada, da mídia ou da arte, não importa. Imagens são instrumentos de construção de camadas enganadoras ou fictícias da realidade?
Pedimos mais uma pizza, dessa vez metade portuguesa, metade aliche e mais duas cervejas, quando o Performer relatou a simples equação de seu projeto: “Ficção + vontade de subverter as linguagens + humor + puxar o tapete de quem lê + o território de verdade que há na ficção = ?. Esse “?” é realmente um mistério. Acho que minha relação com a arte é e sempre será um pouco de diletantismo e brincadeira. Brincadeira não tem objetivo. Talvez tenha sido o André Gide que criou o conceito de falésia: textos, romances, poemas que vão levando o leitor e, de repente, largam-no não numa estrada, mas sim numa falésia. Gosto dessa ideia. É quase a mesma de tirar o tapete. É o “?””.
O “?” é o espaço indefinido e impreciso que se abre na ausência da imagem numa exposição de artes visuais, pois “?” não dita regras, não tira nada do lugar para se impor, não decreta a morte do autor, não inaugura um novo circuito nas artes e nem privilegia a ideia sobre o objeto físico. O “?” talvez seja uma das definições possíveis do artista-etc. do Ricardo Basbaum. Antes de se aproximar da proposta de Olbrist de tradução de um trabalho artístico no que ele circula em várias permutações de linguagem, há aqui uma negociação comum entre o proponente e o reativador do texto, uma vez que o projeto não necessita da realização da peça instruída para existir. Assim, ele questiona a natureza e a função de seu papel como artista e coloca sobre o publico o critério de emancipador do projeto artístico.
Contrário à esfera imperativa, mesmo que lúdica, da arte como instrução – baseada na des-autorização do trabalho artístico ou numa re-definição ou desaparecimento do mesmo – o que aparece aqui é a economia invisível da interatividade da leitura, uma vez linear entre livro-leitor, e agora multidirecional entre espaço físico-leitor. Certamente as instruções de Duchamp, Yoko e Fluxus informam o raciocínio do Performer, mas ele tem o sol em sagitário e a lua em câncer e jamais diria “faça isso”, ele apenas faria. O público negocia na falésia e não na ideologia. O Performer é texto, o público é leitor e também editor. Como ele mesmo disse, “quem dá as instruções sabe muito bem fazer o que faz, ao contrário de mim. Eu jamais faria uma exposição chamada “Como viver junto” e sim uma chamada “Já que eu não sei viver junto”, e com o charme desse “não” sairia para a balada para exercitar a paquera”.
Paguei a conta e despedimo-nos. Peguei dois ônibus e o metrô e durante a viagem li a antologia de todas as performances já realizadas e/ou propostas pelo Performer, organizada por Fabio Morais. Confesso ter tido vontade de re-editar, ou representar as seguintes instruções: há de se salvar os objetos comuns de seu estado de ready-made e re-inseri-los em seus circuitos familiares, os de mercado (“já que não sei fazer arte contemporânea”); há de se fazer um documentário sem dinheiro, que consiste somente dos créditos com os nomes dos amigos que participaram gratuitamente de sua produção, chamado Solidariedade (“já que eu não sei fazer documentário”); há de se ligar caixas acústicas, uma por uma até a sexta, que gradativamente subtraiam o som do entorno, até chegar ao silêncio (“já que não sei fazer música”). Depois disso, talvez escreva instruções de como escrever um texto critico para o Performer realizar. Já que não sei escrever texto critico.