A mostra Sol preto parte da pesquisa de Daniel Frota sobre uma expedição científica britânica realizada em 1919 em Sobral, no Ceará, para documentar um eclipse solar. A exposição busca investigar o choque estabelecido no contato entre a precariedade econômica de Sobral e o início da física moderna por meio deste experimento, cujo registro fotográfico foi usado na comprovação da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA CONVERSA COM DANIEL FROTA
1. Fenômenos naturais frequentemente são usados como metáfora para tratar de situações cuja intensidade remete à violência das forças da natureza: furacão político, avalanche de denúncias, magnetismo sexual, atmosfera belicosa etc. O eclipse, nesse sentido, bem poderia ser associado ao obscurantismo religioso ou a uma instância política, social que se sobrepõe a outra. Como interpretarias o eclipse em Sobral à luz dos embates políticos, místicos e filosóficos que se impuseram sobre a cidade a partir da chegada da comitiva de cientistas, em 1919, com o propósito de comprovar a teoria da relatividade de Einstein?
Normalmente associamos o eclipse a uma ideia de perda de visibilidade, de ofuscamento, causada pela sobreposição de elementos. O próprio verbo “eclipsar” sugere uma certa tomada de posição, uma ação de poder em que um dos elementos se bota à frente do outro, tirando-lhe o brilho. Essa leitura me remete mais diretamente à tensão entre os astrônomos e a população de Sobral, em que a ideia de progresso se impunha como demonstração de civilidade sobre as urgências locais. Essa mesma força autoritária ou apocalíptica, como acreditavam, que solapa o vigente, serve também de modelo para pensar como se dá a construção do conhecimento ao longo do tempo, em um ciclo de sucessivas sobreposições, onde uma explicação se põe em cima da anterior, até ser desbancada futuramente por uma próxima e assim por diante. Um processo em constante revisão que garante tempo infinito para um conhecimento sempre incompleto.
Mas existe ainda uma outra leitura, desta vez positiva em contraste com o caráter de anulação da primeira, cujo foco está no que nasce desse processo traumático. É emblemático lembrar que a atenção dos cientistas em Sobral não estava no protagonismo do Sol e da Lua, mas sim nas estrelas que se mostrariam atrás do Sol durante a escuridão. O eclipse adquire aí um caráter revelador, ao tornar visível uma luz em segundo plano. Essa inversão me fez pensar em Sobral como esse pano de fundo imprescindível para o protagonismo da teoria de Einstein. Uma verdadeira constelação de relações sociais, místicas e políticas que se mostraram fundamentais e ao mesmo tempo alheias ao efeito de mudança provocado pelo fenômeno.
2. Luz e sombra. Passado e futuro. Segundo Giorgio Agamben, vivemos em meio à "escuridão do presente", diante de um mundo que se apresenta fracionado, nebuloso, cujas possibilidades de futuro existem como potência, estão latentes. A coexistência de temporalidades – ou momentos históricos – tão díspares quanto aquela experimentada pelo povo de Sobral em 1919 e a outra, sinalizada pela pesquisa científica em curso na Europa no mesmo período, nos dá a dimensão de um universo que responde a diferentes lógicas, leis ou mesmo dinâmicas sociais. Passado o tempo, como percebes a herança deixada e o impacto causado pelo eclipse sobre aquela comunidade, sobre o futuro daquela cidade?
A imagem da “escuridão do presente”, segundo Agamben, se dá através de uma luz que não nos alcança. Em um universo em expansão, onde as galáxias se afastam de nós a uma velocidade superior a da luz, as luzes emitidas por elas nunca chegam até aqui. Por isso vemos escuridão no céu. Essa analogia descrita por ele fala sobre nossa dificuldade com o descompasso que é viver e ter uma compreensão histórica do nosso próprio tempo. Como se nosso corpo fizesse sombra sobre o lugar onde pisamos.
Mas também revela o lado positivo da sombra, como uma luz que está permanentemente viajando em nossa direção. Mas também sabemos que essa unidade que chamamos de “presente” não é construída homogeneamente. Uma pluralidade de descompassos coexistem, se sobrepõem e às vezes se chocam. O que aconteceu em Sobral foi isso, um choque de duas realidades contemporâneas entre si, mas com tempos tecnológicos e sistemas de crença distintos. Um encontro de duas versões, uma tão real quanto a outra.
O que me interessa nesse encontro é justamente o não-aniquilamento das partes e o paralelismo das duas linhas narrativas. Dessa tensão, surge um caráter ficcional e ambíguo na história, e esse é o meu principal interesse. Um interesse de representação. De como duas estratégias distintas construíram dois objetos simbólicos correlatos. Enquanto o pós-eclipse representou uma ruptura para os cientistas, para o povo de Sobral trouxe de volta o ritmo lento de cidade do interior. É difícil traçar uma herança deixada pelo eclipse. Sobral cresceu e hoje é tombada como patrimônio cultural do Brasil. É o segundo município mais desenvolvido do Ceará, atrás apenas de Fortaleza, e a maior economia do interior do estado. Curiosamente, neste ano foi incluída na lista das 10 cidades do futuro das Américas, com população entre 100.000 e 250.000 habitantes, pelo guia de investimentos estrangeiros do grupo britânico Financial Times.
3. As esculturas carregam em si questões e respostas manifestadas em sua forma não verbal. Neste sentido, as pedras Incas (Sol e Lua) reproduzidas em sua exposição transformam-se em buracos negros, indevassáveis, pontuando a ausência absoluta de respostas aos fatos ou ficções articuladas no passado. Qual a real importância em se entender se a origem daquelas esculturas remete a uma cultura primitiva, nativa das Américas, ou à invenção de uma comunidade, de uma cultura sincrética incapaz de responder ao desconhecido e disposta a forjar sua própria história ignorando diferenças entre fato e ficção?
A real importância só existe quando se tem algum compromisso com a verdade, o que não é o caso da minha prática como artista. Verdadeira ou não, a história dessas pedras é fascinante. Esses dois objetos polidos e pretos são reproduções de duas pedras que encontrei no acervo do Museu Dom José, em Sobral, durante a filmagem do vídeo “Sol preto”. Postos em uma espécie de mesa de luz, eles fazem parte de uma instalação que parece ainda em processo ou inacabada, que remete a essa não resolução sobre a procedência das pedras.
O título da instalação “Vaca Seca” dá uma pista da história. Em 1926, uma pedra em quartzo, com contornos polidos e estranhos, foi achada por um lavrador na Fazenda Vaca Seca no município cearense de São Benedito. A pedra foi então levada até o bispo Dom José. Por conta das características, ele endereçou uma carta ao arcebispo de Lima, no Peru, relatando e descrevendo o objeto. A resposta foi que se fossem de fato pedras sagradas usadas em rituais pelos Incas, elas deveriam ser duas, o Sol e a Lua. O Sol seria representado pela menor delas, uma vez que a Lua se mostrava maior aos olhos Incas. Uma escavação foi feita na mesma fazenda e acabaram por encontrar o par que faltava. Especula-se que as pedras teriam sido trazidas pelas primeiras expedições de Vicente Pinzón, navegador espanhol que fez parte da expedição de Cristóvão Colombo e que teria descoberto as terras brasileiras três meses antes da chegada de Pedro Álvares Cabral. Sem qualquer poder de barganha, as pedras teriam sido então abandonadas por sua tripulação nas terras cearenses.
4. Em espanhol, o gênero literário (ou cinematográfico) por nós brasileiros chamado de ficção científica é naquela língua denominado ciencia ficción, o que sinaliza a questão da própria ciência ser, em alguma medida, uma obra de ficção. Como entendes o atual debate que põe em xeque a possibilidade de a ciência conformar o mundo a partir de leis, equações e linguagens que são, elas próprias, fruto de nossa curta passagem por um universo que existe desde muito antes – e existirá para muito além – de nossa própria existência?
Em um projeto anterior eu tive a oportunidade de entrevistar o físico Marcelo Gleiser sobre um texto seu chamado “Empirical Incompleteness and the Laws of Nature”. Esse texto toca em um ponto crucial sobre os limites do conhecimento científico e cita um texto do Einstein em que ele levanta a existência do caráter ficcional nas teorias científicas. Gleiser propõe o termo “incompletude empírica” para descrever uma limitação fundamental que atravessa todo o conhecimento adquirido através do método científico.
A limitação de que só conhecemos o que é passível de medição e que só há medição através de contato, o que acaba por distorcer o fenômeno observado. Por mais que os equipamentos de medida evoluam e se tornem cada vez mais precisos, todo conhecimento gerado é conhecimento acomodado aos instrumentos de medida. Gleiser exemplifica a limitação da ciência através da anedota de um antropólogo que, escondido em um arbusto, consegue fazer anotações sobre uma tribo nunca antes vista. Em um certo momento ele é descoberto e depois de muita discussão a tribo permite que ele continue suas anotações, só que agora morando na tribo.
A presença do antropólogo acaba alterando o comportamento dos índios e assim comprometendo suas anotações. A diferença entre a anedota e a realidade científica é que, segundo Gleiser, os cientistas nunca tiveram a mesma sorte do antropólogo, que conseguiu guardar as anotações de antes de ser descoberto. Essa limitação não invalida o conhecimento científico de forma alguma. Ela simplesmente revela a impossibilidade de se alcançar um conhecimento da natureza absoluto – como antes se acreditava com a Teoria Final, ou a Teoria do Todo – e que uma das cláusulas do nosso contrato de acesso à realidade é estarmos necessariamente submetidos a uma perspectiva. Se pensarmos no conhecimento como uma ilha, quanto maior nosso conhecimento, maior a área de contato com o desconhecido.
5. O eclipse enquanto fenômeno natural ou plástico traz a carga de mistério que marca toda e qualquer espera. O mundo é posto em suspensão, por algum momento não é mais o que parecia ser. Mas, então, ele se desfaz, e tudo torna a ser o que era antes. Assim ocorreu após o eclipse visto de Sobral? Houve desfecho algum? Ou as sombras permanecem projetando sobre o mundo as mesmas incertezas que sempre acompanharam nossa aventura sobre a Terra? Haverá em algum momento a revelação? Ou o turning point definitivo será nossa completa desaparição, como espectadores, donos de uma perspectiva tão única quanto irrelevante diante do cosmos?
Uma série de especulações de fundo místico ganhou forma nos meses que antecederam o eclipse. O eclipse de Sobral seria o momento em que a mitologia finalmente cede à ciência?
Hoje temos clareza sobre as consequências que a nova teoria de Einstein trouxe, não só para o entendimento dos limites da física, mas também para o avanço tecnológico com o desenvolvimento de satélites e a revolução que se desencadeou nos meios de comunicação. Logo após o eclipse era difícil prever as consequências da descoberta, mas sabia-se que algo havia se rompido. A sensação de mudança existia ainda sem a concretude dos seus efeitos. A incerteza do fim deu lugar à incerteza do início. De certa maneira um mundo acabou, ou pelo menos uma visão de mundo cedeu e deu lugar a uma nova, cujos desdobramentos eram inverificáveis.
Aos olhos de Sobral, menos ainda. É curioso pensar que em meio a tantos eclipses solares, esse, exclusivamente, tenha adquirido um valor simbólico. O que essa mudança deve, de fato, ao fenômeno do eclipse? Um fenômeno natural que é totalmente alheio a nosso misticismo, nosso cientificismo, nossa filosofia, religiosidade e crença. Um fenômeno que nos é indiferente e que seria exatamente como qualquer outro se não fosse a predisposição de certos homens em projetar seus desejos. A vontade de querer ver o extraordinário, tanto através do frame da ciência, quanto da superstição. Nem a versão do mito, nem a versão teórica: o que deu sentido ao eclipse foi uma vontade anterior, a da projeção, de se projetar, de se incluir no fenômeno. Sem esse primeiro impulso, 1919 teria passado batido e nada teria sido construído a partir do eclipse.