Escrevendo de uma perspectiva anterior à difusão do terrorismo islâmico, Paul Virilio argumenta que a guerra consiste mais apropriar-se da imaterialidade dos campos de percepção do que em obter vitórias materiais - territoriais, econômicas. No atual contexto, essa tese só vem confirmar a dominação do mundo pelo arsenal de imagens do terrorismo, transformadas em espetáculo depois de 11 de setembro de 2001 .
O terror marca o ponto de partida do projeto “Você tem medo do quê?”, quando Claudia Jaguaribe vê-se impossibilitada de continuar sua série de fotografias Aeroporto. Dos âmbitos da impermanência, da espera e da inércia, que se processam nos espaços de transição dos aeroportos, a pesquisa de Jaguaribe foi atirada para o centro das neuroses mundiais: a fobia, a insegurança.
A videoinstalação Você tem medo de que?, em exposição no Paço das Artes, faz um retrato do atual estado da sociedade. Mas um retrato impreciso, sem rosto nem identidade. Claudia Jaguaribe nunca foi uma fotógrafa documentarista. Seus projetos sempre foram muito mais pautados pela construção do que pelo registro de realidades. Aqui não é diferente, embora o processo deste novo trabalho apresente uma matriz de cunho documental e articule constantemente as noções de documento e invenção.
A primeira etapa do projeto aconteceu entre março e novembro de 2005, quando a pergunta “Você tem medo de quê” foi lançada em uma página da internet e gerou 2.812 relatos sobre medos de diversas naturezas. De enchentes, de ser discriminado, de ser deletado como um email, de filhos, de elevador, de dormir sozinho em quartos que ficam no fim do corredor de qualquer hotel do mundo. O material constitui um mostruário das inseguranças de todo o País e, ao ser editado em 33 textos (o que foi feito pela escritora Beatriz Bracher), passa da condição de documento à literatura.
Nos textos editados em cadernos, os relatos encadeiam-se uns aos outros, sem discriminação. O medo é descolado da identidade de Letícia, Renato, Sergio, Wellington, etc, para compor corpos híbridos. Há uma perda da identidade individual em benefício do coletivo , procedimento parecido ao utilizado pela autora nos Retratos Anônimos, do final dos anos 1990, em que construía rostos a partir da colagem de múltiplas identidades.
Como os Retratos, a videoinstalação é a construção de um só corpo, monstruoso, que contém potencialmente alguns dos mais poderosos medos da humanidade. Projetados em cinco telas, os vídeos são uma extensão dos relatos, recriados e reinventados em pequenas narrativas. Cada vídeo tem um tratamento próprio, como se tivesse sido feito por um autor diferente, com uma variedade muito grande de recursos: apropriações de conteúdos jornalísticos, imagens do arquivo pessoal da fotógrafa, animações gráficas, imagens abstratas, situações encenadas, ficções construídas a partir de registros documentais.
Em nenhum momento há um anseio arquivista de sistematização dos resultados da pesquisa. Não são definidas as tipologias do medo. O que há é uma livre-apropriação desses conteúdos, guardando o caráter múltiplo da pesquisa e preservando o aspecto de “obra aberta” à participação pública, que define a primeira parte do trabalho.
Quem apagou a luz?
Virilio indica que “ao lado das máquinas de guerra, existem sempre máquinas de espiar”. A estratégia da guerra de trazer à vista o que estava imerso em treva apenas reproduz o instinto humano diante do medo: acender as luzes. Mas, ao decidir apontar a câmera de vídeo para as subjetividades que lhe foram confiadas no ambiente íntimo e seguro de um website, Claudia Jaguaribe não vem exatamente iluminar esses conteúdos. Seu partido é o da escuridão.
A recusa da objetividade é uma premissa do trabalho. Manipulados por uma série de operações técnicas durante a produção ou a pós-produção da imagem, os vídeos são alegorias da morte, da solidão, da violência, da perda, do sobrenatural, do futuro, da velhice, etc. Alegorias em suas estratégias de acumulação e de sobreposição de vozes e sentidos, assim como em sua quase-ilegibilidade.
Como uma atualização dos antigos álbuns de gravuras, que em outros tempos refletiram sobre a condição humana diante das mazelas sociais ou da violência da guerra, esta videoinstalação é uma coleção de estampas sobre o medo. Mesmo lançando mão da ficção e da invenção (já que o medo é, segundo Claudia Jaguaribe, “ao mesmo tempo, realidade e criação”), existe aqui o claro propósito de trabalhar com a realidade. Como diz o artista norte-americano Dan Graham, “Todos os artistas são iguais. Eles sonham em fazer algo que é mais social, mais colaborativo, e mais real do que a arte”.
Entre as estampas, destaca-se uma cujo sentido resume o espírito de toda a série. Trata-se da imagem de uma pessoa que não consegue sair de dentro de um quarto. A projeção em
looping garante que o corpo permaneça eternamente dentro dos limites retangulares da projeção e se nos apresente como uma jovem Pandora presa em sua caixa.
* Claudia Jaguaribe foi artista convidada para a Temporada de Projetos 2006