Gustavo Motta – Me parece que desde os primeiros trabalhos, lá pelos idos de 2005, o Hóspede tem em vista um diálogo com a arquitetura tomada em sua dimensão urbanística – ou seja, como modo de organização da vivência da cidade, seja em termos políticos abrangentes, seja na dimensão empírica individual ou cotidiana. O trabalho apresentado agora no Paço das Artes faz parte de um programa maior, pautado no “Plano de Metas e Benefícios”, que funciona como uma espécie de exposição irônica do jargão empresarial que normalmente está associado a esse tipo de iniciativa de “reconversão urbana”. Qual a função da arquitetura no presente trabalho?
Grupo Hóspede - A primeira apresentação do projeto, que se deu no mesmo Paço em dezembro de 2008, trazia um projeto arquitetônico pensado pelo grupo. Era uma proposição nossa que procurava ironizar a lógica megalomaníaca da arquitetura pós-moderna. Na nova proposta, que em certo sentido segue a anterior, continuamos a trabalhar em cima dessa história do plano de reconversão. Mas, agora, sem perda da experiência anterior, já não se trata de pensar um desenho arquitetônico específico. A gente está pensando em fazer outras coisas, meio na borda disso. Não pensar na arquitetura no sentido do desenho. Mas pensar mais sobre a imposição que é feita. Pensar sobre essas escolhas que são feitas pelo capital e que são geridas pelos governos, que acabam incidindo sobre a população de um jeito muito foda. Onde ninguém sabe direito o que está acontecendo. “Opa! Demoliram!”
Nesse sentido, o trabalho tem ecos ou procura reformular abordagens que o grupo já utilizou anteriormente, como no Laboratório Hotel (2007), onde vocês formaram um centro de estudo e residência numa casa no Largo da Batata, em São Paulo. Esta área sofre atualmente um plano de reformas urbanas análogo do ponto de vista da especulação imobiliária – ainda que não em vista da função central que o campo da cultura exerce nas reconversões urbanas do centro da cidade. Esses ecos tem relação, creio, com um pensamento sobre a cidade, como lugar das relações sociais mais amplas. Ainda assim, a arquitetura se apresenta como o campo material onde essas relações estão objetivadas em construções. Neste sentido, em ausência, a arquitetura está muito presente nesta proposição dos tapumes e da criação ficcional de uma reforma, não?
Claro que a solução apresentada agora dialoga com a arquitetura, mas sem procurar nada específico – nem suas formas – nos mecanismos internos da atividade arquitetônica. O que o trabalho vai falar de arquitetura é justamente sobre a finalidade dela. Não é o projeto – o projeto no sentido formal mesmo, desenho do arquiteto – , mas é o tapume fechando a área para construir. Um outdoor dizendo: “Obras”.
Mas tem uma diferença entre os projetos anteriores e o que o Grupo procura buscar agora, não? No geral os trabalhos se desenvolviam a partir da ideia de site-especific – que, se não foi abandonada, está agora servindo a uma ideia central mais ampla, ou que procura abordar os problemas de forma mais geral.
Tem um pouco essa ideia de sair da história do site-especific, mas não se resume a isso. O PRELOC procura ter uma linha mais abrangente. A partir dessa linha mais abrangente surgiu a história de ter um plano-mestre que fosse compatível com várias situações.
E aí ocorre uma espécie de inversão: esse trabalho das reconversões coloca uma espécie de narrativa que os outros não tinham. Os outros trabalhos partiam sempre de alguma espécie de narrativa prévia, dada pelo lugar. Era a ideia “este lugar é assim, assim e assado” – e os trabalhos procuravam intervir no que estava acontecendo. Agora é o contrário: impõe-se uma narrativa maior. Parece que é uma tentativa de escapar dessa especificidade microcósmica e anedótica do lugar, da história específica, para entender como os problemas que aparecem ali funcionam sistematicamente. Inclusive porque reconsidera o problemas que tinham sido levantados antes.
Agora surge a narrativa completamente ficcional do G.H. Associados, em que o ponto de vista é do mais alto. Isso surgiu um pouco inconscientemente, naturalmente, ou a ideia partiu do princípio de se colocar como uma empresa e tentar intervir a partir disso? Intervir no sentido de acentuar os dados cômicos, acentuar o que tem de arbitrário, o que tem de bizarro e de bizonho nessas coisas. Como surgiu isso?
Surgiu um pouco inconscientemente, mas foi se acentuando ao longo do tempo. Logo surgiu a ideia de uns outdoors, ou então panfletos, que, ao invés da criação de um lugar onde estivesse implicado o trânsito de cultura – como um centro cultural, uma biblioteca, ou um local de discussão – , houvesse uma demolição ou uma reconstrução total, que afetasse a circulação geral dos arredores, fosse em termos culturais, fosse em termos de tráfico de veículos mesmo. O Grupo pensou o que se poderia fazer para que um trabalho como os que estava desenvolvendo não virasse apenas uma denúncia de artista dentro de um espaço expositivo. Daí veio a ideia de uma marca, um logotipo, uma empresa que vem de cima e se impõe.
De um lado dá para ver como nos outros trabalhos a narrativa estava posta pela realidade. E agora é a ficção que tem uma tentativa de sistematizar os problemas, que se referem aos problemas que o Grupo já estava tateando antes: função das reformas urbanas, realocação de populações inteiras, forma e função da arquitetura. Por outro lado, tem uma coisa com relação ao blog, a coisa da ironia, ou de sua enunciação, que parece mais clara agora em relação ao trabalho apresentado em dezembro. Ou pelo menos mais claro para quem souber o que é o Grupo Hóspede, ou estiver disposto a entender a rede de problemas que o Grupo comumente aborda de diversos modos nos diferentes trabalhos… De toda forma, o texto que está no blog agora, o G.H. Associados, se apresenta como um texto empresarial.
“Altamente qualificado em suas qualidades.” (risos)
O texto já começa a dar uma pista pelo exagero, pelo bizarro. Por um lado, eu acho que de fato avança naquilo de uma mudança tanto do foco da narrativa quanto do narrador. Por outro lado, continua tendo um problema de ironia no discurso, na narração que, ao mesmo tempo em que expõe a bizonhice dos problemas que o Grupo já está mapeando faz tempo, entra nela. Só que, ao mudar a voz, ela reflete ou se mistura com a ironia objetiva do fato. Em que ponto vocês acham que essa “ironia ativa”, e que em certo sentido tenta demonstrar as contradições do lugar, consegue ter voz junto a essa ironia objetiva do fato? O quanto esse discurso empresarial vai gerar um sorriso de canto de boca, mas não vai de fato à exposição das contradições da situação?
Ah, mas há outras coisas no trabalho onde essa questão da ironia deixa de ter centralidade. Ela não é anulada, não fica de lado, mas ganha outra dimensão. Porque ao tentar pensar como as intervenções no lugar vão estar, e como elas estão submetidas a esta narrativa geral da reconversão, é possível que haja, ao mesmo tempo, um aprofundamento dessa narrativa e uma relativização dela. O que o Grupo pensou na primeira exposição, de dezembro de 2008, foi realmente trazer à vista o problema, expô-lo.Tratava-se da exposição que esses projetos normalmente têm mediante a imagem, mediante a maquete.
Essa segunda exposição procura chamar a atenção para que as pessoas vejam aquilo como se de fato o prédio fosse ser demolido. Apenas num segundo momento, pegar o folder e ler aquele plano de metas absurdo e pensar realmente: “Nossa, isso está dentro dessa lógica, de onde vem isso? Quem são essas pessoas que estão fazendo esse absurdo?”. Que é uma coisa que se deveria pensar sempre quando se vê esse tipo de projeto. Quem falou que o Largo da Batata é passível de ser totalmente destruído? De onde veio isso? Que pesquisas se fizeram para chegar a essa conclusão? Quais são os interesses ali que fazem isso ser possível? Que não fazem isso ser possível em outro lugar, porque ali é mais urgente agora? Então, pensar essa urgência em cima desses centros culturais, que muitas pessoas nem sabem que existem. Passam na frente do lugar e nem sabem que ele existe. Só vão saber que existe quando ele vai ser destruído.
Dar visibilidade justamente pela placa de reforma, os tapumes.
Esse texto ou narrativa é importante por causa disso, mas ele é sempre um segundo momento. O texto passa a ser uma espécie de segunda camada necessária, talvez, para a apreensão completa da coisa. Mas eu não preciso saber exatamente a narrativa do Paço, saber que aquilo é um lugar...
Aí tem um pouco da tal da ironia objetiva da situação, no texto.
Esse choque inicial é que vai propiciar uma leitura pensante do texto, onde aquele conforto vai me desconfortar. E é ele que impõe ironicamente a mudança de voz da narração.
Uma inversão…
Uma coisa que comentaram é que antes o Grupo usava uma abordagem mais “nós somos seus amigos, nós estamos aqui, somos seus vizinhos no laboratório, estamos pesquisando”, e agora não, estamos usando essa voz vinda de cima, e aí?