Alan Fontes
A Casa
Alan Fontes é um artista que pesquisa a linguagem pictórica na era da imagem técnica. Em um contexto pós-industrial, a pintura se caracteriza como pós-produção: vale-se do repertório cultural para resignificar, recombinar e reprogramar elementos da história da arte e do cotidiano. Trata-se de uma reciclagem estética que dá sentido e aumenta a sobrevivência dos objetos culturais que habitam em excesso –e, portanto, em contínuo processo de esquecimento– o imaginário contemporâneo. Uma “micropirataria”, para usar um termo de Nicolas Bourriaud –o teórico da “pós-produção”–, está em curso na instalação “A Casa”, que Alan Fontes apresenta no Paço das Artes.
A escolha da casa como objeto de sua investigação já demonstra de saída o partido adotado pelo artista. Interessa a ele o que nos é familiar. Interessa corromper a assepsia do espaço expositivo com uma ambientação com a qual todo visitante pode se identificar: mesa, sofá, televisão, estante com objetos comuns, vasos de planta, brinquedos, tapetes, cadeiras e... quadros. A pintura de Alan Fontes não existe fora desse ambiente construído; ela se apresenta aclimatada na intimidade do espaço (re)conhecido; ela se dá a ver não como obra de arte hermética a ser decifrada ou rechaçada, mas sim como uma peça integrante do universo compartilhado e, portanto, nos captura desarmados, nos convida à aproximação.
Mas ao primeiro impacto, de reconhecimento, segue-se um outro, de desvio da esfera do familiar. Todos os ambientes da casa e os objetos que os ocupam são pintados de cinza. A cor aparece apenas nas pinturas e, sub-repticiamente, como ruídos em meio ao acinzentado, em uma lâmpada verde de um abajur ou em um ou outro móvel. “A Casa” contém algo de estranho ou sinistro, porque as pinturas se destacam como algo mais real do que os móveis em sua materialidade pseudo-real. Desse modo, os cômodos dessa habitação desviante levam o observador a reconhecer o familiar na planaridade da tela que representa a casa em detrimento de identifica-lo na tridimensionalidade dos objetos caseiros. O contraste entre um registro e outro desequilibra a experiência da obra.
Um percurso que oscile entre habitar o espaço e habitar a pintura nos leva a desvelar as micropiratarias contidas nas telas: um arranjo de bichos de pelúcia nos remete à obra de Annette Messager; uma almofada jogada sobre um sofá encena uma padronagem de Beatriz Milhazes; os ímas de geladeira formam uma pequena exposição coletiva de obras consagradas; inúmeros auto-retratos de Alan Fontes estampam as paredes dos diferentes cômodos. Essas e diversas outras reprogramações do arquivo morto da cultura ocidental renascem na investida pós-produção do artista.
Interessante notar, como uma dobra conceitual na produção de Alan Fontes, as reciclagens culturais que o artista empreende entre uma e outra montagem de seus trabalhos. A própria produção do artista está sujeita a reprogramações. Fecha-se, assim, um ciclo ecológico de extrema coerência. Estamos diante de um criador que não infesta o mundo de novidades mas, antes, preocupa-se em dar uma destinação digna ao repositório de novidades postas no mundo por todos os criadores que o antecederam. Pensando com Félix Guattari, podemos dizer que Alan Fontes exercita em seu trabalho as três ecologias (mental, ambiental, subjetiva) preconizadas pelo filósofo francês como um novo paradigma estético-ético-político, o da “ecosofia”.