Liliane Benetti
Liliane Benetti entrevista Erica Ferrari
Liliane Benetti: Estratigrafia, nome desta mostra, é um termo emprestado da Geologia que se refere ao estudo dos extratos rochosos que compõem a crosta terrestre e que busca estabelecer relações entre a disposição espacial das camadas e sua sucessão no tempo. Como você relaciona as obras apresentadas aqui, no Paço das Artes, com esse termo?
Erica Ferrari: Cheguei no termo a partir da minha aflição constante em relação à perenidade das construções urbanas. Como os sedimentos rochosos são fenômenos geológicos, podem ser estudados cientificamente, com resultados coesos independente da época de seu estudo. Já para estudar as camadas de uma construção, um edifício, por exemplo, temos que considerar o contexto político e econômico de cada alteração de seu estado físico e de seu uso. E mesmo assim, podemos chegar a conclusões que serão revistas e reinterpretadas. Nesses trabalhos apresentados aqui pensei em fundir elementos indicativos do esplendor e da destruição inerentes à história de cinco Palácios Nacionais em um único momento.
Liliane Benetti: Parece-me que, ao construir essas imagens, você traz à tona simultaneamente várias camadas de história atribuídas à construção e ao uso atual desses palácios, como se nessas superfícies que você elabora coexistissem sem hierarquias tanto os extratos da historiografia oficial quanto acontecimentos esquecidos ou soterrados pela memória corrente. Partindo dos conceitos inferidos do título que você escolheu, gostaria que comentasse os aspectos mais relevantes da pesquisa que culminou nos trabalhos aqui reunidos.
Erica Ferrari: Na faculdade, trabalhando em grupo, tentávamos pensar ações e obras que ironizavam e, ao mesmo tempo, traziam a possibilidade de novos tipos de uso a certos espaços arquitetônicos que eram, em boa medida, o espelho da função política e econômica ali desenvolvida. Hoje, depois de alguns intensos anos de produção, vejo a necessidade de uma aproximação mais estreita com a história dessas arquiteturas que, a um só tempo, repelem e intrigam, como é o caso dos palácios. A complexidade de informações que podem nos transmitir as camadas de soterramentos e construções – ou simplesmente as edificações em si – de cidades como Belém, Rio de Janeiro ou São Paulo me parece sempre em estado de latência, gritando por uma revanche. Essa série de trabalhos responde um pouco a isso. Imagino toda essa movimentação como uma tentativa de me guiar dentro da minha própria angústia de cidade e de sobrevivência dela.
Liliane Benetti: Gostaria que você comentasse a escolha de materiais na série Estratigrafia – Palácios: fórmica, ouro e madeira. As folhas de ouro recobrem pequenas áreas nos cinco painéis, além de desenharem as datas no chão, abaixo de cada peça; a madeira queimada está na representação de labaredas que tomam as superfícies; e, por fim, o reaparecimento da fórmica, material mais recorrente na sua produção.
Erica Ferrari: A formica é um material que tenho utilizado continuamente. É um laminado industrial, aplicado como acabamento em móveis e ambientes. O que me fez escolher esse material é a facilidade de oferta, a variedade de cores e texturas, além da possibilidade de manipulá-lo tanto em peças tridimensionais como em bidimensionais. Consigo trabalhar com a formica em um procedimento de recorte e colagem, aproveitando o acabamento quase perfeito inerente ao material. Nessa série de trabalhos apresentada aqui no Paço das Artes senti a necessidade de desenvolver também outras técnicas. Vejo o emprego da madeira queimada e da folha de ouro como índices para o eixo temático dos trabalhos, ou seja, auxiliam a trazem a aura de austeridade dos palácios e do esfacelamento proveniente de sua destruição. Os índices acabam se misturando em certa medida, visto que o ouro desenha as datas em que ocorreram os conflitos e a madeira queimada integra o próprio desenho dos palácios.
Liliane Benetti: Percebo que aqui no Paço das Artes, a própria montagem repõe as operações formais presentes em cada imagem: dispondo-se diante do painel do meio, notamos nas laterais escadarias e colunas que expandem-se em todos os sentidos, enquanto no centro da montagem tem-se o único “corredor” formado por um arco dentro de um arco, dentro de um arco, dentro de um arco... Parece-me que a montagem dos trabalhos segue o ritmo de expansão e vertigem propulsado nas imagens. Você frequentemente leva em consideração o espaço físico que receberá os seus trabalhos e a posição do observador diante deles, não?
Erica Ferrari: Sim. Os trabalhos em si muitas vezes são planos, mas geralmente o espaço de apreensão deles é o que vem primeiro no esboço. No caso específico dessa exposição do Paço, o projeto acabou sendo um pouco modificado pela configuração do lugar. Mas partiu do desejo de pendurar os painéis, incluindo o fundo deles como parte do trabalho, e com a menor quantidade de parede possível, em uma tentativa de que o próprio espaço representado nos painéis se expandisse para o entorno.
Liliane Benetti: Como foi o processo de construção das imagens de Estratigrafia? Havia uma preocupação em manter uma coerência narrativa não apenas em cada painel mas também nas relações que estabelecem entre si naquele espaço? Você sempre parte do desenho?
Erica Ferrari: Sim, o desenho e a configuração espacial são geralmente pontos de partida. Pensei no desenho de cada painel se relacionando com as características arquitetônicas próprias do palácio em questão e do conflito que se ali se desencadeou. Também considerei a cidade da edificação, o que se materializou bem livremente tanto nas escolhas compositivas como em relação ao uso das cores e texturas.