Abaixo, o depoimento de Flavia Mielnik sobre a exposição “Bermúdez: se extinguen las fieras?” para a curadora Galciani Neves.
Em novembro de 2016, no teatro de Lincoln, aprendi que Bermúdez é uma das onze cidades que integram o distrito de Lincoln, no interior da Argentina. Eu fazia parte de um grupo de onze artistas que se reuniram para trabalhar nas onze localidades daquele distrito, cada um em uma cidade. Para que cada artista pudesse escolher seu destino dos próximos dias, os representantes das cidades foram àquele teatro com suas apresentações de Power Point contar sobre os lugares onde viviam. Sobre Bermúdez, falaram pouco, como se fosse uma cidade que não tivesse muito a dizer: que ali viviam 96 habitantes, que havia uma escola, cavalos e uma antena de telefone que funcionava dependendo do dia. A pouca informação e a dificuldade que tive em construir a imagem daquele lugar me conduziram diretamente para lá. Na manhã seguinte, entrei no carro do prefeito de Bermúdez e seguimos viagem pela estrada de terra. Quando cruzamos o trilho do trem, o carro tremeu e ele me contou que o trem que comunicava aquela região com as cidades vizinhas deixou de passar em 1980. Também me contou que, quando chove, o povoado fica ilhado, que a sede da prefeitura fica na cidade vizinha e que eu dormiria na escola. Quando busco informações oficiais, em 1914, o censo registra uma população em Bermúdez de 700 habitantes; em 1970, 178 habitantes; em 2001, 91 habitantes, e, em 2010, 72 habitantes.
Os trinta quilômetros até chegar a Bermúdez e as oito noites em que eu dormi lá se descolaram do meu parâmetro interno de medidas. Em Bermúdez, tudo parecia se dilatar: a distância entre os vizinhos, o tamanho do capim, o volume da água, o tempo do relógio e a duração da noite. Minha cama ficava na sala do jardim de infância, do lado da janela com vista para as letras do abecedário e para a seção de bonecos. Meu cobertor tinha dois lados, e o travesseiro era uma almofada de cetim vermelho. Dormi três noites na escola e, depois, precisei buscar uma casa.
A Lídia era a cozinheira da escola, e a casa dela era um ponto de encontro dos moradores da cidade. Lá se reuniam os homens, as mulheres, as crianças e os cachorros. Eles passavam a noite jogando cartas, futebol e comendo as empanadas que ela preparava. Descobri que sua filha estava estudando fora e, então, poderia haver um quarto vazio na casa. Perguntei o que ela achava de eu dormir algumas noites lá e sua resposta foi: “Claro, Flavia, pero entones hay que buscar la cama, porque usted esta durmiendo en ella, en la escuela”. Então devolvemos a cama a seu quarto de origem e eu fui junto. O cobertor de tigre e a vinda dele para São Paulo alongaram minha permanência na cidade.
Durante o dia, caminhava pelo povoado, tocava de porta em porta, me apresentava e me convidava para entrar. Tomava mate, comia bolacha e conversava sobre a cidade. As conversas construíram um mapa; e uma cidade acabou se vestindo dela mesma. Lídia, Vanina, Carla, Negra e Marta sabiam de tudo sobre a Bermúdez que estávamos construindo. As crianças da cidade chamavam-me de “profe” e formaram uma comitiva de companhia e de proteção. Os maridos chegavam no fim do dia com desejo de aparecer nessa Bermúdez que se fantasiava. Rosa, a mulher com mais idade do povoado, ainda guardava a chave do bar. Pedro não me vendia fiado em seu armazém, mas me contava grandes histórias. Atualmente, ele me escreve e assina: “beijos do Padre Pedro”.
A espontaneidade, a precariedade e uma onda de risada infinita organizaram uma cidade inteira que se fantasiou e se fotografou. Trouxe comigo a presença do corpo, o movimento de abrir uma porta, de instalar uma bandeira, de mover mesas, de andar no meio do mato em busca do forno que assava o pão de Bermúdez. Marta levou seu kit de tintas e duas telas feitas por ela para construir a cena das aulas de pintura que aconteciam no salão cultural. Pepino, seu marido, ajudou na organização, e fizemos a foto. No dia em que fui embora, Marta me deu de presente um quadro com a imagem de dois tigres. Só depois, em fevereiro de 2018, chegou o cobertor. Sempre achei que ele fosse da Lídia, a dona da cama em que eu dormia, mas, quando conversei com ela para organizar a vinda dele, descobri que era da Vanina. Dentro de uma bolsa de plástico, ele fez o percurso de quem sai de Bermúdez para chegar a São Paulo. As fotos —que podem estar em mais de um lugar ao mesmo tempo— foram colocadas em porta-retratos e imagino que estão dentro da casa dos moradores. Não tenho certeza, precisaria voltar e descobrir como a paisagem se acomodou naquela cidade que parecia não ter muito o que contar, quando nos conhecemos na apresentação de Power Point lá no teatro de Lincoln.
Imaginemos um ponto, desses bem pequenos. Logo, induzimos que ele é constituído de pontos ainda mais miúdos e quase indefiníveis, de muitos que são. Seria possível tocar nesse ponto e em seus limites? Podemos pensar que a experiência de tocar no ponto e, portanto, arrastar os dedos em seus outros componentes miúdos, é dessas muito difíceis de contar, pois, afinal, o que é aquilo que tocamos? De que matéria essa experiência é constituída? Que palavras podem contar dessa travessia? Quem já o alcançou, volta com os desenhos de seus contornos? Talvez seja um fato, sobre o qual nunca refletiremos de maneira satisfatória. Quem atravessa a fronteira do referido ponto, regressa com um mapa inverossímil e muito pessoal (segundo a avaliação de cartógrafos e etnógrafos cientificamente distantes de suas fontes de pesquisa). Talvez por isso, a narrativa sobre aquilo que acontece quando um ponto passa a ser lugar é um muito a dizer sobre a vida e quem tenta contá-la, encontra matéria para muitas histórias sobre o ponto, sobre mapas, sobre o que, ali no ponto, resiste. Onde acaba o ponto, começa não apenas o dizível sobre estar nele. Começam sua matéria (mais que memória) e as sobras de pó e vento carregadas clandestinamente após passar por ele. Sim, porque depois, o ponto torna-se lugar e não representação muda de lugar.
A reconhecida e trivial consistência métrica do tempo diluiu-se e, à sua revelia, seu ritmo, as unidades utilizadas e as distinções que causa tornam-se meros artifícios para mensurar quão perecíveis são os objetos, as casas, os indivíduos, as juris- dições e todas as demais coisas que já nascem com a vocação para serem ruínas. Que uma latência inventiva seja instituída, pensaram e arquitetaram juntos. Mas que também o esquecimento seja possível, pois, se é para tudo ser no seu tempo, é preciso um tanto de desmemória. O projeto das coisas, dos estabelecimentos necessários, das demandas da urbanidade e da vida como instâncias públicas foi todo pensado para ver tudo acontecendo em suas dinâmicas livres e imanipuláveis. Assim, os registros dos acontecimentos são invenções; os personagens ora existem, ora fogem; e a verdade sobre tudo é coisa não vista, não exposta, mas sempre algo a acontecer no corpo de quem a narra.
Andar lado a lado com quem já está ali há bastante tempo, não para se aproximar, mas para que o outro se dê a conhecer ainda que se mantendo estranho e um tanto misterioso —poço sem fim para queda. Uma aparência sugerida assim que o seu nome é pronúncia e, assim, o nome pode conter o sujeito inteiro. Momento a momento, tornam-se todos um lugar aberto, de histórias inesgotáveis que querem ser memória e promessa, ao mesmo tempo, são toda a gente vasos comunicantes de vazios e preenchimentos de acontecimentos.
Uma experiência que se repete, revigorando-se na memória, é uma espécie de fórmula que se dissipa no momento anterior ao que nomeamos de lucidez. Toda palavra dita para lhe corromper o comportamento é incompreensível, enquanto todo objeto nos entrega a uma potente distração que vira experiência novamente. E, aí, caímos em uma cadeia-abismo, que nos encaminha sempre para um outro lugar, um outro tempo, sem correspondência, sem repetição do mesmo e sempre em reticência.
Flavia Mielnik nasceu em São Paulo. É licenciada em Educação Artística pela FAAP em São Paulo e pós-graduada em Arte Investigación y Creación pela Universidade Complutense de Madri. Passou o ano de 2017 em residência na FLORA ars+natura em Bogotá. Entre as exposições que participou se destacam as individuais “Arquiteturas adormecidas sobre um vetor entre duas cidades” no MARP em Ribeirão Preto – SP (2015), “Geografia de um lugar contada por ele mesmo” na Zipper Galeria em São Paulo – SP (2014) e as coletivas “Em algum lugar entre a terra e a casa” na Oficina Cultural Oswald de Andrade em São Paulo – SP (2016), “25 años de Arte Injuve” no Círculo de Bellas Artes de Madrid (2010) e VI Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (2005). Foi contemplada pelo Edital ProAC de Apoio às Artes Visuais no Estado de São Paulo (2014/15), Prêmios 39º SARP (MARP, 2014) e Prêmio Injuve de Arte Joven (Espanha, 2008). Seus trabalhos integram as coleções do Instituto La Juventud Injuve (Espanha), acervo SESC de Arte Brasileira e Museu de Arte de Ribeirão Preto. Em 2016 participou da residência COMUNITARIA na Argentina. Desde 2014 desenvolve oficinas de intervenção artística em diversos locais do Brasil.