Tristes Topos
Vinicius Spricigo
Há algumas décadas, a modernidade tem sido questionada nas mais variadas esferas. No âmbito da arte não seria diferente. Na esteira do pós-modernismo, o vago termo arte contemporânea passou a designar cada vez mais um distanciamento em relação à arte moderna. Mais recentemente, o termo arte global, muitas vezes empregado como sinônimo de arte contemporânea, viria aumentar ainda mais essa distância entre as práticas estéticas mais atuais e a tradição moderna. A proximidade geográfica de um mundo globalizado estaria assim amplificando uma distância temporal e transformando o moderno em nossa antiguidade. Ao menos esse foi um dos motivos, em 2007, de uma das mais importantes exposições de arte contemporânea, a documenta de Kassel.
Na contramão do discurso vigente, no lugar de questionar se a modernidade está viva ou morta, Beto Shwafaty interroga, de acordo com Bruno Latour, se já fomos modernos de fato. Parece-me que essa interrogação permeia diversos aspectos do projeto Remediações e isso permitiria um diálogo produtivo com o trabalho. Poderíamos iniciar pelo sentido, ou pelos vários sentidos possíveis, do título desse trabalho: remediar indica uma ação em direção ao diagnóstico, citado acima, de um mal-estar com relação à modernidade. Diagnóstico que não impede os chamados países emergentes de investir na continuidade de projetos modernizantes carentes de constantes remediações. Tais ajustes parecem ser antes de mais nada inerentes aos processo de modernização de sociedades localizadas nas outrora periferias, ou agora regiões emergentes de um sistema pós-colonial, como no caso brasileiro. Sendo assim, embora a imagem construída de um pais moderno, que encontraria nos anos 1960 em Brasília a sua síntese, se distancia na perspectiva de um país emergente no cenário global, aquilo que tal imagem designava enquanto sinal de progresso, avanço e desenvolvimento se re-media na forma de discursos sempre renovados pelos meios de comunicação.
Entretanto, enquanto operação crítica no interior do sistema artístico, remediar é também uma contra-narrativa que se constrói por meio do estilhaçamento dessa imagem midiática de um Brasil moderno, minando construções ideológicas e simbólicas. Não à toa o artista se apropria das treliças, usadas por Oscar Niemeyer no Catetinho, como elemento constitutivo dessa re-mediação. As treliças são elementos de mediação entre espaço interior e exterior, público e privado e, assim como as imagens veiculadas pelos meios de comunicação, mediam e ao mesmo tempo ocultam. Ademais, seu caráter é transitório, assim como o palácio temporário feito de tábuas, cujo nome remete ao antigo palácio presidencial no Rio de Janeiro. Shwafaty evidencia dessa forma que a modernidade no Brasil não significou uma ruptura efetiva com o passado colonial. A expansão do projeto de modernização do Brasil para a região central do país é a continuidade de um processo de colonização cuja lógica não foi revista e ainda é operante. Em constante estado de transitoriedade, são remediadas contradições decorrentes de um passado colonial que foi recaldado. Daí a necessidade de uma arqueologia profunda nas ruínas de uma arquitetura moderna, agora antiga talvez, à procura daquilo que foi esquecido e encoberto. Sob curvas de Niemeyer, Shwafaty encontra traços de um barroco pobre, sem ornamentos, rural ou ribeirinho. Nos seus dizeres: “Talvez, tanto a história da arquitetura moderna quanto aquela relativa ao período colonial brasileiro, sejam uma o negativo e positivo da outra… São dois lados de uma mesma moeda”.
Para concluir, seria preciso dizer que essa modernidade tropical e barroca sempre reiterou a sua originalidade diante dos discursos hegemônicos e metropolitanos. Entretanto tal diferença não se caracteriza em termos estilísticos ou formais como poderíamos supor, mas justamente nas estruturas fundadas durante o início do processo de colonização e suas derivações modernizantes posteriores. Segundo Shwafaty, nas curvas de Niemeyer não estão decalcadas as curvas de nosso relevou ou das mulheres à praia, mas em primeiro lugar, as curvas de nível da mineração. Temos aqui finalmente a forma convertida em processo. Minar e minerar são os termos usados pelo próprio artista para descrever um método de trabalho que demanda uma tomada de posição. Antes de mais nada, uma topografia crítica.
EntrevistaVinicius Spricigo – Há vários sentidos para o título do seu projeto. Um deles seria o sentido de validar um processo de modernização e realizar as adaptações necessárias para leva-lo adiante. Outro, mais próprio ao tipo de operação que você realiza, é o de desconstrução do primeiro, propondo outras leitura e fragmentando ou estilhaçando o discurso original.
Beto Shwafaty – Existem duas conotações: de minerar e de minar. Existe aí algo desse estilhaçar, da ordem de criar rupturas ou fissuras, no qual intuitivamente ou arbitrariamente, eu me coloco como um sujeito que acaba tomando um partido, um lado. Enfim, eu não sou um observador neutro, existem ali ações muito claras, na medida em que eu não aceito essas histórias, essas mediações e busco remediar isso de alguma maneira para criar uma possível crítica, uma possível reflexão que passa da ordem dos discursos para um campo também visual. Nesse sentido, o tipo de remediação que o meu projeto traz é diferente dos outros discursos, porque procuram remediar e questionar certas propostas. São novas remediações para problemas antigos. Retomando a ideia de contra-narrativa, eu procuro colocar que esses discursos são repetições que na verdade não se efetivam na realidade, e quando se efetivam tem uma distância entre realidade e projeto. Existe uma distância entre o projetual e a concretização real.
VS - Pode-se falar da construção de uma contra-narrativa?
BS - Sim, apesar de que a tentativa de construção de uma contra-narrativa esbarra no fato de que nossas narrativas mal se estabeleceram… mas há sim o dado de tentar desvelar certas repetições de discursos que aconteceram no passado e que retornam agora – com alguns detalhes alterados – mas obviamente possuem o mesmo tipo de intuito, de objetivos. É também uma contra-narrativa na medida em que o video e algumas dessas intervenções lidam com duas esferas, dois registros, que é a imagem como representação do real, figurativa (podemos assumir a fotografia como registro e índice do real), e elementos que são abstratos, que pode dar a entender uma certa projetualidade, uma ideia ou um certo padrão de abstração que é inerente ao projetar arquitetônico, à linguagem do desenho urbanístico. Quando você colide esses dois universos, surgem fricções, você tem uma colisão. É uma difícil equação. Nessas colisões, eu espero que algum tipo de incômodo surja e um possível pensamento crítico se instaure.
VS - Você está lidando com meios de comunicação que têm um alcance muito amplo e também um tipo de estratégia de comunicação que busca uma eficácia quase totalizante. Como o seu trabalho poderia criar uma tensão nesse campo muito maior no qual se inscreve?
BS – O grau de alcance do que eu faço é proporcional ao tipo de contexto, de apoio e de interesse que cada projeto consegue agregar. É claro que os canais de comunicação buscam uma eficácia, e não somente isso, buscam resultados e lucros, quer dizer, eles são uma indústria comunicacional, cultural. Por outro lado, estamos falando aqui de uma coisa que é uma artesania, no sentido de que os tempos, envolvimentos e escalas da arte são regidos por outros parâmentros. O quê ainda torna a arte (contemporânea) um campo rico de possibilidades, talvez seja essa certa liberdade em relação à ideia de eficácia capitalista, ou seja, uma liberdade produtiva em relação à critica. Nesse aspecto, o que pode ser diminuto as vezes consegue reverberar para além de seu campo. Mas para isso, são necessários diversos processos e senão, remediações.