Com o objetivo de estimular a reflexão sobre construções narrativas e a capacidade da arte de trazer para a memória coletiva social, outras perspectivas e possibilidades de mundo, Juliana Caffé parte dos conceitos do antropólogo haitiano Michel-RolphTrouillot sobre a dimensão reflexiva da história e do filósofo martinicano Frantz Fanon sobre descolonização, para debater o processo narrativo como ferramenta para reelaborar passados, presentes e futuros e criar novas formas de vínculo social e conhecimento.
Diante do atual momento global de instabilidades e crises no panorama econômico e de representatividade política, padrões são postos à prova, e outras vozes ganham espaço na procura de dar sentido à história e criar novas formas de subjetivação, outras condições para o saber e o poder. “Do Silêncio à Memória” é esse percurso de conflito e resistência na busca pela afirmação política.
A exposição é composta por videoinstalações, fotografias, quadros e outras peças de sete artistas e coletivos que têm trabalhado com processos narrativos e com a dimensão reflexiva da história relacionada, principalmente, com questões raciais, de classe, de sexualidade e de gênero.
E.D.E.L.O, Explode!, Grada Kilomba e Jaider Esbell, são coletivos e artistas que, nos últimos anos, focaram seus trabalhos na idéia de realçar narrativas silenciadas ou abafadas no transcorrer da história. A obra Zapantera Negra de E.D.E.L.O. – projeto artístico liderado por Caleb Duarte e Mia EveRollow – por exemplo, reúne o resultado visual de encontros entre Panteras Negras e Zapatistas realizados entre 2012 e 2016 no México, e reflete dois movimentos revolucionários poderosos articulados em torno da luta anticolonial de negros e índios.
Já Clara Ianni, Iván Argote e Victor Leguy, são artistas que direcionam suas pesquisas nas construções narrativas e na relação do homem com a história. Em 111, Clara Ianni questiona a narrativa oficial disseminada pelos livros de história e literatura brasileira ao realizar uma ação na Biblioteca de São Paulo, localizada no antigo endereço do presídio Carandiru. A obra ativa a memória de uma tragédia nacional e questiona as relações entre história, arquitetura e poder.
De hecho, el pasado es pasado sólo porque hay un presente, sólo en tanto puedo señalar algo allí porque estoy aquí. Pero nada está inherentemente allí o aquí. En ese sentido, el pasado no tiene contenido. El pasado – o, más precisamente, el carácter pasado del pasado - es una posición. (Michel-RolphTrouillot)
As narrativas históricas se constroem invariavelmente no interjogo de relações de poder. Através da análise dos processos de produção de conhecimento é possível verificar o que é lembrado e o que é esquecido, o que é registrado e o que é omitido na criação de um fato. Muitos dos silêncios produzidos nesse percurso revelam não só as injustiças e injunções do poder, como a sociedade que os sustenta. Nessa complexa teia de interesses e subjetividades, a memória revela-se como campo político, lugar de disputa e resistência.
Segundo o antropólogo haitiano Michel-RolphTrouillot[1], existem desigualdades presentes em todas as etapas de produção de uma narrativa. Esse descompasso se encontra tanto na criação de fontes e arquivos, elementos que constituem operações de seleção e exclusão de informação, como na produção escrita, processo sujeito a interpretações e interesses pessoais e institucionais. A partir dessas desigualdades, das vozes contempladas e dos silêncios produzidos, forma-se a memória coletiva social.
Trouillot ressalta, no entanto, que os silêncios são inerentes à história, pois o passado não pode ser acessado na sua totalidade, é impossível dizer tudo. Para o autor, deve-se, porém, ter consciência de que as decisões sobre o que é silenciado respondem também aos interesses e às relações de poder. Por esse motivo, a história deve ser reflexiva, não preocupada em encontrar verdades absolutas, mas em reconhecer que existem múltiplas narrativas que podem ser contempladas.
Atualmente, vivemos em um mundo supostamente pós-colonial onde muito se discute sobre asconfigurações de saber e poder que ao longo dos anos constituíram imaginários e afetividades coletivas. Segundo Frantz Fanon, expoente do pensamento afro-caribenho, “a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos”[2], um processo que só pode ser compreendido na exata medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. Assim, os estudos pós-coloniaistornam-se ferramenta de conhecimento e estratégias de ação sobre o mundo, desvelando formas de dominação e colaborando na construção de espaços de resistência e de plataformas estético-políticas.
Nesse contexto, a reflexão crítica acerca das construções narrativas torna-se não apenas um dispositivo de resistência contra processos coloniais obscuros - como o racismo, o patriarcado, a violência de gênero e outras formas de opressão - como uma possibilidade de reelaborar sentidos e criar novas formas de vínculo social e conhecimento. A condição reflexiva da históriaarticula diversas perspectivas em constante mutação, de modo que vozes são assimiladas e silenciadas a todo instante. Assim, outros pontos de vista são sempre negociáveis. Nesse movimento de refluxo da memória, passados são relativizados no presente, para gestar outros futuros.
Uma das potências da criação artística é justamente a sua capacidade de criar novos espaços e temporalidades e, explorando e multiplicando sentidos, provocar questionamentos, formular problemas e propor saídas que possibilitem lidar melhor com as crises darealidade contemporânea. Do Silêncio à Memória retrata um caminho de luta em busca de afirmação política. Apresenta obras de artistas que trabalham com processos narrativos e com a dimensão reflexiva da história, a fim de trazer outras perspectivas e possibilidades de mundo para a memória coletiva social.
sobre o evento
Sobre a Temporada de Projetos
A vocação experimental do Paço das Artes é constatada, principalmente, por meio da Temporada de Projetos, que foi criada com o objetivo de abrir espaço à produção, fomento e difusão da prática artística jovem. Concebida em 1996, a Temporada de Projetos teve sua primeira exposição realizada em 1997 e se tornou, ao longo dos anos, um rico celeiro para a cena da jovem arte contemporânea brasileira.
Anualmente, a Temporada abre uma convocatória nacional selecionando nove projetos artísticos e um projeto de curadoria para serem desenvolvidos e produzidos com o respaldo do Paço das Artes. Os selecionados recebem acompanhamento crítico, a publicação de um catálogo sobre suas obras e um cachê de exibição. Desde seu surgimento, quando ainda era bienal (tornando-se anual em 2009), o programa possibilita a emergência de inúmeros artistas, curadores e críticos, muitos deles presentes na cena artística atual. O júri da atual Temporada é composto por Clarissa Diniz, Diego Matos, Lúcio Agra e Priscila Arantes.
Em 2014, o Paço das Artes lançou a plataforma digital MaPA (mapa.pacodasartes.org.br), concebida por Priscila Arantes, que reúne todos os artistas, curadores, críticos e membros do júri que passaram pela Temporada de Projetos.
visitação
De 14 de novembro a 13 de janeiro de 2019
abertura
14 de novembro - 19:00 horas
acompanhamento crítico